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Não há
dois seres humanos – nem mesmo gêmeos idênticos – que possuam o mesmo perfil em
suas qualidades e suas limitações em termos de inteligência (Gardner, 2010)
HOWARD
GARDNER conta, na obra “As inteligências
múltiplas ao redor do mundo”, como começou sua teoria:
Em 1983, publiquei Frames of Mind: The Theory
of Multiple Intelligences [Estruturas da Mente: A Teoria das Inteligências
Múltiplas, Artmed, 1994]. Na época, era pesquisador e psicólogo, trabalhando em
tempo integral na região de Cambridge/Boston. Dividia meu tempo entre dois
centros de pesquisa: o Boston Veterans Administration Medical Center, onde
trabalhava e desenvolvia estudos com indivíduos que haviam sofrido alguma forma
de dano cerebral, e no Projeto Zero, um grupo de pesquisa na Escola de Pós-Graduação
em Educação de Harvard, que tratava de questões de desenvolvimento humano e
cognição, principalmente nas artes. Meu trabalho dentro do Projeto Zero
examinava o desenvolvimento, em crianças, de diferentes habilidades em várias
formas de arte.
Eu
possuía formação como psicólogo do desenvolvimento, nas tradições de Jean
Piaget, Lev Vygotsky e Jerome Bruner, e me considerava parte desse segmento da
comunidade acadêmica, e alguém que se dirigia a ele. Se não tivesse trabalhado
junto dessas populações – crianças normais e superdotadas e as que haviam sido
normais e sofreram dano cerebral – eu nunca teria concebido minha teoria das
inteligências múltiplas (IM, como veio a ser chamada depois). Como a maioria
das pessoas leigas e a maior parte dos outros psicólogos, teria continuado a
acreditar na ortodoxia do quociente de inteligência (QI): na existência de algo
único chamado inteligência, que nos permite fazer uma série de coisas mais ou
menos bem, dependendo do quanto somos “inteligentes”. Nascemos com um determinado
potencial intelectual que é, em grande parte, herdável (ou seja, nossos pais
biológicos são os principais determinantes de nossa inteligência), e os
psicometristas são capazes de nos dizer nosso nível de inteligência
administrando testes nesse campo.
Entretanto,
todos os dias em que trabalhava, eu entrava em contato com exceções evidentes a
essa ortodoxia. Encontrei indivíduos com dano cerebral cuja linguagem havia
sido muito prejudicada, mas que conseguiam bons sultados em contextos
desconhecidos; observei pacientes com dano cerebral com dificuldades em termos
espaciais, mas que conseguiam realizar todos os tipos de tarefas linguísticas.
Observavam-se dissociações duplas desse tipo em todo o espectro cognitivo. Eu
estava tão intrigado com esses fenômenos que, em 1975, publiquei The Shattered
Mind: The Person After Brain Damage. As mesmas anomalias surgiam em meus
estudos com crianças.
Alguém
com pouca idade pode ter um desempenho excelente em poesia, ficção e expressão
oral, mas ter dificuldades para desenhar uma pessoa, uma planta ou um avião. Um
colega dessa pessoa pode ser excelente desenhista, mas ter dificuldade para
falar, escrever ou ler. Essa ideias começaram a ser expressadas em meu livro de
1973, The Arts and Human Development, e no de 1980, Artful Scribbles. Mais uma
vez, esse padrão de dissociações não é compatível com a ortodoxia que eu havia
absorvido crescendo nos Estados Unidos dos anos de 1950 e como estudante de
psicologia do desenvolvimento e cognitiva na década de 1960.
A vaga
intuição de que “há algo de podre no estado da teoria sobre a inteligência”
provavelmente teria permanecido sem verificação se não fosse por uma
organização filantrópica holandesa, a Fundação Bernard Van Leer. Em 1979, a
fundação concedeu uma verba generosa à Escola de PósGraduação em Educação de
Harvard para responder à seguinte pergunta: “O que se sabe sobre a natureza e a
realização do potencial humano?”. Essa era uma questão de peso – eu costumava
brincar dizendo que era “uma pergunta mais típica da Costa Oeste dos Estados
Unidos do que da Costa Leste”. No evento, pediram-me que preparasse uma síntese
daquilo que já se havia determinado sobre cognição humana a partir das ciências
biológicas, psicológicas e sociais.
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Na China, em 2004, tentei descobrir as razões pelas quais minha teoria das IM havia se estabelecido ali. O mistério foi esclarecido por um jornalista em Xangai, que me disse: “Dr. Gardner, no Ocidente, quando as pessoas ouvem falar nas IM, vão diretamente ao que é especial em seu filho, a descobrir seu ‘gênio especial’. Na China, ao contrário, as múltiplas inteligências são simplesmente oito talentos que devemos desenvolver nos filhos de todas as pessoas”.
O
NASCIMENTO DA TEORIA
Alguns
anos antes, eu havia feito um rascunho muito inicial de um livro chamado Kinds
of Minds, mas a ideia nunca chegou a ser lançada. Ter recebido cinco anos de
apoio generoso da Fundação Van Leer me deu uma oportunidade valiosa. Com a
ajuda de vários assistentes de pesquisa talentosos, fiz o levantamento de uma
ampla literatura sobre cognição, incluindo estudos em genética, neurociência,
psicologia, educação, antropologia e outras disciplinas e subdisciplinas. Esse
levantamento não apenas fortaleceu minha crescente intuição de que a cognição
não era monolítica, como também proporcionou as evidências empíricas duras com
as quais embasar essa afirmação.
Restavam
dois passos. O primeiro era como chamar essas faculdades humanas dissociáveis.
Cogitei uma série de nomes e, por fim, decidi chamá-las “inteligências
humanas”. Essa virada léxica ofendeu alguns ouvidos e ainda gera destaque
quando a digito em meu computador, mas tinha a vantagem de chamar a atenção
para a teoria, em parte porque invadia um território até então pertencente a um
determinado tipo de psicólogo. (Nunca subestime a reação quando pisar nos
calcanhares de um grupo que acha que sabe tudo.) Tenho certeza de que não
estaria escrevendo esta introdução, 25 anos depois, se houvesse produzido o
mesmo livro, mas o chamando de Seven Human Faculties ou Seven Cognitive
Talents.
O segundo
passo implicava a definição de uma inteligência e de um conjunto de critérios
para aquilo que deveria significar inteligência. Passei a considerar
inteligência um potencial biopsicológico de processar informações de
determinadas maneiras para resolver problemas ou criar produtos que sejam
valorizados por, pelos menos, uma cultura ou comunidade. Mais coloquialmente,
considerava a inteligência como um computador mental configurado de forma
especial. Enquanto a teoria padrão sobre a inteligência postulava um computador
multiuso, que determinava as melhores habilidades da pessoa dentro de um
espectro de tarefas, a teoria das IM postulava um conjunto de dispositivos de
informática. Ter um ponto forte em um deles não significaria força ou fraqueza
em outro.
O que
observei de forma intensa em indivíduos com danos cerebrais, o que Oliver Sacks
e Alexander Luria escreveram sobre perspicácia, é, na verdade, a condição
humana.
O que
costumamos chamar de “inteligência” é uma combinação de determinadas
habilidades lógico-linguísticas, particularmente as que são valorizadas na
escola secular moderna. Os critérios foram consequência das várias disciplinas
que eu vinha pesquisando. Como eu disse no capítulo 4 de Frames of Mind, uma
inteligência se enquadra razoavelmente bem em oito critérios:
1.
Isolamento potencial por dano cerebral.
2.
Existência de idiots savants, prodígios e outros indivíduos excepcionais.
3.
Operação central ou conjunto de operações identificáveis.
4.
Trajetória de desenvolvimento característica, culminando em desempenho
especializado.
5.
História e plausibilidade evolutivas.
6. Apoio
de tarefas psicológicas experimentais.
7. Apoio
de dados psicométricos.
8.
Suscetibilidade à codificação em um sistema simbólico.
Considero
o conjunto de critérios como a mais original e mais importante característica
da teoria das IM. Qualquer um pode criar outras inteligências, mas, a menos que
elas se ajustem a alguns critérios, postular uma inteligência se torna um
exercício de imaginação, e não um trabalho com base no conhecimento acadêmico.
Curiosamente, nem os apoiadores nem os críticos da teoria prestaram muita atenção
aos critérios.
Desde o começo, deixei claro que sua aplicação
era, em alguma medida, uma questão de avaliação. Não há regra inamovível para
determinar se uma candidata a inteligência cumpre ou não os critérios. Dito
isso, tenho adotado uma postura muito conservadora para aumentar a lista de
inteligências. Como listado no parágrafo seguinte, em 25 anos acrescentei
apenas uma inteligência e ainda tenho minhas dúvidas a seu respeito.
Em
relação às inteligências em si, já mencionei as duas geralmente valorizadas nas
escolas seculares modernas e invariavelmente avaliadas pelos testes de
inteligência: habilidade em língua (inteligência linguística) e em operações
lógico-matemáticas. As outras inteligências são a inteligência musical, a
espacial, a corporal-cinestésica (uso do próprio corpo ou de partes dele para
resolver problemas ou fazer algo), a interpessoal (entendimento dos outros),
intrapessoal (entendimento de si mesmo), a naturalista e uma possível nona
inteligência, a inteligência existencial (a que gera e tenta responder às
maiores perguntas sobre natureza e preocupações humanas).
Em nível científico, a teoria faz duas afirmações. Em primeiro lugar, todos os seres humanos possuem essas inteligências; dito informalmente, elas são o que nos torna humanos, falando em termos cognitivos. Em segundo, não há dois seres humanos – nem mesmo gêmeos idênticos – que possuam o mesmo perfil em suas qualidades e suas limitações em termos de inteligência, pois a maioria de nós é diferente dos de nossa espécie, e mesmo os gêmeos idênticos passam por diferentes experiências e são motivados a se diferenciar um do outro.
Fonte:
Inteligências Múltiplas - Ao redor do mundo Gardner, Howard; Chen, Jie-Qi;
Moran, Seana - Porto alegre. Artmed 2010
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